Publicado por Redação em Notícias Gerais - 24/08/2016

Recordações da casa dos mortos-vivos

O economista Furtado sabia dos limites do modelo brasileiro de desenvolvimento, protagonizado por Vargas, o precursor do projeto de industrialização, e Juscelino, que prosseguiu com a modernização

Como os protagonistas dos filmes de terror de qualidade duvidosa, os zumbis do fazendão atrasado ressuscitam para nos assombrar

No Brasil, o modelo agroexportador predominou durante o primeiro terço do século XX, sobretudo entre 1910 e 1925, quando as exportações de café atingem seu auge. A renda nacional dependia da exportação de produtos primários, cronicamente sujeitos à tendência secular de queda de preços e flutuações cíclicas da demanda. Seus efeitos estrangulavam o abastecimento de bens de origem externa, sufocado de tempos em tempos por severas crises cambiais.

A crise mundial da década de 1930 e a eclosão da Segunda Guerra Mundial tornaram a industrialização a única resposta adequada aos inconvenientes da dependência da demanda externa. O fazendão atrasado e melancólico haveria de ceder espaço para a aventura do desenvolvimento industrial.

A velha economia primário-exportadora, entre tantas, deixou a herança de deficiências na infraestrutura (energia elétrica, petróleo, transportes, comunicações), nas desigualdades regionais e na péssima distribuição de renda. Eleito em 1950, Getúlio Vargas impulsionou o projeto de industrialização. Lançou em 1951 o Plano de Eletrificação, criou o BNDE em 1952, a Petrobras em 1953.

Juscelino tomou posse em 1956 e prometeu avançar 50 anos em 5. O desenvolvimento da indústria prosseguiu com a modernização dos setores já existentes e a constituição dos departamentos industriais que produzem equipamentos, componentes, insumos pesados e bens duráveis. O governo concentrou os gastos na infraestrutura.

O Plano de Metas contemplava cinco prioridades: energia, transportes, alimentação, indústrias de base e educação. A construção de Brasília e a abertura de estradas como a Belém-Brasília faziam parte do projeto de interiorização do desenvolvimento.

No âmbito das relações internacionais, o projeto juscelinista integrou a economia brasileira ao vigoroso movimento de internacionalização do capitalismo do pós-Guerra. Nas pegadas da prosperidade dos 30 Anos Gloriosos, as empresas europeias e americanas transladavam suas filiais para os países em desenvolvimento.

Na década de 1950, a economia brasileira apresentou um crescimento acumulado de 99%; na de 1960, de 80%; e nos anos 1970, de 131%. Nos 50 anos que terminaram no início da década dos 80, a economia brasileira cresceu de forma acelerada e sofreu notáveis transformações.

A desorganização dos anos 1980, a década perdida, de um lado revigorou o cosmopolitismo das camadas dominantes, fazendo caducar os compromissos firmados em torno do objetivo comum do desenvolvimento; de outro, aumentaram as pressões das classes subalternas pelo reconhecimento integral de seus direitos políticos, sociais e econômicos.

O cosmopolitismo liberal não tem nada de novo. Vem de longa data a atitude basbaque da fração majoritária das camadas dominantes com o que vem de fora para dentro. O liberalismo à brasileira sempre combinou a rejeição (de todos os liberais) às intromissões da política na economia com uma profunda e mal dissimulada desconfiança na capacidade nativa de alcançar por conta própria as conquistas da sociedade industrial e de seus padrões modernos de convivência.

Nos anos 1990, os “renovados” da periferia sucumbiram às forças da globalização e da integração dos mercados, sobretudo os financeiros. A estratégia de “desenvolvimento” apoiava-se na abertura comercial e na valorização cambial, predatórias à indústria nacional. Como apontou Ricardo Carneiro, no setor de bens de capital as importações passam de 20% da produção doméstica em 1990 para quase 100% em 1998.

O neoliberalismo à brasileira destruiu a sinergia entre investimento público e privado dos anos de crescimento acelerado. Durante a década de 1980, o País cresceu apenas 33% e nos 1990, pífios 19%.

Apesar do aumento de, aproximadamente, 50% do PIB na primeira década do século XXI, as vicissitudes foram aprofundadas. Um estudo publicado em junho deste ano pelo Bank for International Settlements concluiu que a performance da economia brasileira está forte e diretamente associada à evolução dos preços das commodities.

Não são poucos os que hoje alegam a irrelevância da industrialização para o desenvolvimento econômico. Em condições normais das sinapses neuronais, esse questionamento seria abalado pelos desdobramentos sociais e econômicos das experiências mais recentes de industrialização.

Como registra em artigo recente o economista de Harvard Dani Rodrik, a globalização e a formação das cadeias globais de valor foram abordadas virtuosamente pelas políticas nacionais asiáticas, sobretudo pelas chinesas, enquanto a América Latina retrocedeu.

Como os protagonistas dos filmes de terror de qualidade duvidosa, os mortos-vivos do fazendão atrasado ressuscitam para nos assombrar. Entre eles, o mais solene é o mordomo da Casa dos Mortos (muito Vivos). Na economia, a imortalidade do zumbi geralmente é impulsionada pelo mundo da fantasia adornado por modelos tão abstratos quanto falaciosos.

Celso Furtado, que por sua dimensão tem sido alvo desse caldo de ignorância, sabia dos limites do “modelo brasileiro” de desenvolvimento, como ficou claro para os que leram sua Análise, publicada na década de 1970.

Suas derradeiras obras demonstram o crescimento da preocupação com a castração da possibilidade de prevalência de critérios democráticos que permitam eventualmente superar a rigidez da lógica econômica visando alcançar um bem-estar coletivo, o que, no ideário de Furtado, constitui o próprio sentido de um sistema econômico nacional. Permanece o desafio colocado pelo mestre:

“Em meio milênio de história, partindo de uma constelação de feitorias, de populações indígenas desgarradas, de escravos transplantados de outro continente, de aventureiros europeus e asiáticos em busca de um destino melhor, chegamos a um povo de extraordinária polivalência cultural, um país sem paralelo pela vastidão territorial e homogeneidade linguística e religiosa. Mas nos falta a experiência de provas cruciais, como as que conheceram outros povos cuja sobrevivência chegou a estar ameaçada. E nos falta também um verdadeiro conhecimento de nossas possibilidades, e principalmente de nossas debilidades. Mas não ignoramos que o tempo histórico se acelera, e que a contagem desse tempo se faz contra nós. Trata-se de saber se temos um futuro como nação que conta na construção do devenir humano. Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-nação”.

Fonte: Carta Capital


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