Publicado por Redação em Gestão de Saúde - 22/11/2019

Hospitais são condenados a indenizar pacientes tratados por falsos médicos



Maraiza Gil Andreoli Pinto, 35, sentiu uma leve dor na região abdominal assim que vestiu o moletom. Parecia uma mordida de formiga, mas não era: havia sido picada por uma aranha marrom, que estava toda encolhida.

Colocou o bicho de oito pernas numa garrafinha de yakult e correu para o pronto-socorro da Santa Casa de São Roque, onde foi logo tranquilizada por uma médica. 

A aranha não era venenosa. Uma dipirona e um antialérgico bastavam, receitou a doutora Natália Oliveira, que, convicta, ainda atirou o potinho com o aracnídeo no lixo.

Três dias depois, como a dor só aumentava e a pele começava a necrosar, procurou o Instituto Butantan, na capital paulista. A aranha, uma Loxosceles, era venenosa, sim, e muito. No limite, sua picada poderia ter lhe provocado uma insuficiência renal aguda. 

“Como já tinham se passado mais de 72 horas desde a picada, não pude tomar o soro, pois não surtiria mais efeito”, conta. O tratamento levou sete semanas. “As coceiras eram insuportáveis, tenho marcas até hoje na pele”, lembra.

Maraiza, como a polícia descobriu mais tarde, tinha sido vítima de uma falsa médica. Quem lhe atendera não fora a dra. Natália Oliveira, mas Natani Taísse de Oliveira, que possuía cédula falsificada do Conselho Regional de Medicina, comprada por R$ 800 na Praça da Sé. Por sete meses, trabalhou no pronto-socorro.

Em razão do episódio, o Tribunal de Justiça condenou a Santa Casa e a Innova Gestão em Saúde, responsável pela seleção dos profissionais, a pagar uma indenização de R$ 30 mil a Maraiza. 

A Justiça não aceitou a argumentação do hospital, que considera que a responsabilidade era somente da empresa; refutou também a defesa da Innova, que afirma ter sido vítima da falsa médica, já “que não tinha como identificá-la”.

“Foram as responsáveis pela seleção, contratação e supervisão da suposta médica”, afirmou o desembargador Vito Guglielmi. “A manutenção de falsos médicos constitui falta gravíssima, pondo em risco a vida dos seus pacientes.”

Acusada criminalmente, Natani não foi julgada ainda. Afirma ter se formado na Bolívia, embora tenha admitido que começou a trabalhar na Santa Casa antes de ter colado grau. 

Sua defesa declara que demonstrará sua inocência no decorrer do processo. O Ministério Público acusa os proprietários da Innova de saberem que Natani atuava ilegalmente, o que eles negam.

O fato está longe de ser inédito. A Folha localizou processos  no estado de São Paulo, tramitando nos últimos 12 meses, envolvendo a atuação de outros 13 acusados ou condenados por exercício ilegal da medicina. Há, inclusive, descrições de atendimentos que terminaram em morte.

O levantamento mostra que a Justiça, de modo geral, tem responsabilizado os hospitais e seus gestores pela ação de falsários, ordenando-lhes o pagamento de indenizações, ainda que a contratação tenha ocorrido sem o conhecimento da ilegalidade.

É o caso da Prefeitura de Capela do Alto, na região de Sorocaba, que terá de pagar R$ 15 mil a uma auxiliar de enfermagem atendida em uma unidade de Saúde da cidade por um falso médico. 

A paciente deu entrada no pronto-socorro com dores abdominais e vômitos. Após um simples toque na região, Márcio Fernando de Araújo a diagnosticou com apendicite, sem realizar outros exames, e a encaminhou para cirurgia no Hospital de Sorocaba. 

Lá, ficou em jejum e sob medicação por dois dias até que surgisse vaga no centro cirúrgico. Como as dores diminuíram, exames foram realizados e se constatou que não tinha apendicite, mas dores decorrentes de cirurgias anteriores.

Cerca de um mês depois, a Prefeitura de Capela do Alto relatou à polícia que Márcio Fernando, que trabalhava havia 45 dias como plantonista, não era quem dizia ser. Até hoje não se sabe seu nome, pois ele fugiu.

O verdadeiro é ortopedista, formado pela Unesp, atua em outra cidade, e nunca trabalhou em Capela do Alto. 

“Quando soube da contratação do falso médico, por empresa terceirizada, o município tomou os procedimentos cabíveis”, defendeu-se, sem sucesso, a prefeitura no processo.

Em outra ação, o Pronto-Socorro Itaquera, na capital paulista, fez acordo por meio do qual se dispôs a pagar R$ 25 mil a um médico que teve seu nome indevidamente usado por um charlatão. O profissional descobriu a fraude ao ser notificado pela polícia para prestar esclarecimentos sobre omissão de socorro e a morte de um paciente.

“Nunca morou em Itaquera, jamais trabalhou em Itaquera, tampouco no referido hospital”, disseram seus advogados na petição inicial.

Condenado em outubro em segunda instância por exercício irregular da profissão, Felipe Esteves Iane afirmou à polícia ter sido relativamente fácil obter empregos na área, em Mauá, cidade em que atuou. 

“Existe uma carência muito grande de profissionais”, disse. “Não há um processo seletivo, bastando que sejam apresentados documentos que comprovem a capacitação profissional.”

Uma de suas vítimas foi Roberta Mateus (nome fictício), que se consultava no Hospital Vital. Diante de sintomas de infecção urinária, Iane, que se utilizava de outro nome, disse que teria de submetê-la a um exame ginecológico.

Na sequência, solicitou novos exames, destinados a diferentes diagnósticos, tais como HIV e câncer mamário.

“A paciente se encontra em estado emocional abalado, até porque foi submetida a exames que não se demonstraram necessários, crendo que quem o fazia era profissional habilitado”, disse o advogado de Roberta no processo no qual a Justiça conferiu-lhe uma indenização de R$ 15 mil.

Os gestores do hospital de Mauá não recorreram da decisão, embora tenham afirmado que a responsabilidade pela seleção do profissional era de outra empresa.

Iane atuou na unidade por quatro meses, utilizando-se de documentação que ele mesmo falsificara, segundo contou aos investigadores.

“Ele disse que sabia do risco de ser surpreendido, mas que preferiu corrê-lo por amor à profissão”, declarou o delegado Jorge Miguel Filho em seu relatório, ao final do inquérito.

Iane, que à polícia disse ter cursado medicina na Costa Rica, foi condenado a 8 meses e 22 dias de detenção, em regime aberto, pena que foi substituída pela obrigação de prestar serviços à comunidade.

Um segundo processo penal ainda aguarda decisão.


Fonte: Folha de S.Paulo


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