Publicado por Redação em Gestão de Saúde - 10/01/2024

Médicos não sabem, não querem ou não podem apontar depressão no trabalho



No final de novembro, o Ministério da Saúde atualizou a lista oficial de doenças relacionadas ao trabalho, com o acréscimo de 165 novas patologias potencialmente causadas por atividades profissionais. Criada em 1999, a relação não havia sido renovada desde o seu lançamento.

Um dos principais avanços da nova lista é o reconhecimento de "fatores psicossociais" como causa das chamadas doenças ocupacionais, avalia Marcia Bandini, médica e professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). O burnout, como é conhecida a síndrome de esgotamento profissional, é uma delas.

Organizadora da recém-lançada coletânea de artigos "Desse Jeito não dá mais! - Trabalho doente e sofrimento mental", publicada pela editora Hucitec, Bandini coloca em xeque o baixo número de benefícios concedidos pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) por depressão relacionada a atividades laborais.

Em entrevista exclusiva à coluna, a professora também critica a notificação de transtornos mentais pelos serviços médicos das empresas. "Os profissionais não sabem como fazer, não querem fazer ou não podem fazer - muitas vezes, porque há conflito de interesses", afirma.

Confira a entrevista na íntegra abaixo.

Alguns estudos apontam o Brasil como um dos campeões mundiais de burnout, mas isso não se reflete no número de benefícios do INSS concedidos por causa desse problema — entre 2012 e 2021, foram "apenas" 877 casos, segundo dados compilados pela senhora para o seu artigo no livro. A que se deve essa disparidade?

Eu acho que é uma tríade. Em primeiro lugar, o burnout não é considerado um transtorno mental. Na Classificação Internacional de Doenças (CID), o capítulo que se refere aos transtornos mentais e comportamentais é o F. Mas o burnout está lá no capítulo Z - são as "condições especiais". Em segundo lugar, não é incomum que quadros de burnout acabem sendo reconhecidos pela Previdência como um transtorno depressivo. E a terceira ponta da minha tríade é, de fato, a subnotificação. É difícil reconhecer burnout. Em geral, quem tem quadros compatíveis com burnout são pessoas já com muito comprometimento com o trabalho.

Mas e essas pesquisas que dizem que até 30% da população brasileira sofreriam de burnout?

São pesquisas de institutos que fazem inquéritos populacionais muito simplificados, e aí acabam trazendo esses números estratosféricos. Quando digo isso, não estou dizendo que burnout não é uma preocupação. É, sim, mas não é uma preocupação dessa magnitude, embora existam muitos quadros de burnout. O risco desses números estratosféricos é que a gente acaba tendo uma leitura muito superficial de algo que é muito grave. Por outro lado, é fundamental que a gente reconheça que o que está notificado, e reconhecido como afastamento por burnout no INSS, não é aquilo — é muito mais. Só que frequentem.

No seu artigo, a senhora mostra que o número de benefícios concedidos pelo INSS por depressão, e comprovadamente causados pelo trabalho, é 20 vezes menor que o número de benefícios por depressão em que não houve essa comprovação. Mas a senhora coloca em xeque o baixo número de transtornos gerados pelo trabalho reconhecidos pelo INSS. Por quê?

Eu faço um capítulo com uma crítica contundente dos serviços [de saúde do trabalho] que são vinculados às empresas, sejam próprios ou contratados. Esses transtornos não são notificados porque os profissionais não sabem como fazer, não querem fazer ou não podem fazer — muitas vezes, porque há conflito de interesses. Eles têm a sua atuação restringida, muitas vezes, pelo empregador.

Transtorno mental relacionado ao trabalho é a associação mais difícil e talvez a mais frágil, porque traz exatamente subjetividades muito importantes — e ele é multicausal. Então, realmente fazer essa associação com o trabalho requer muito cuidado, mas não é impossível. E aí eu trago essa provocação no capítulo e falo assim: é improvável que a diferença seja tão grande, visto que as pessoas que se afastaram [pelo INSS] são seguradas e, portanto, são trabalhadores.

A senhora também critica o atual modelo de saúde do trabalho por concentrar poderes nas mãos das empresas. Quais são os principais problemas?

A OIT (Organização Internacional do Trabalho) tem convenções que tratam de serviços de saúde. E aí tem países que têm modelos semelhantes ao Brasil e países que têm modelos diferentes. No caso do Brasil, especificamente, nós temos dois problemas. Um que é intrínseco, e que me parece um conflito de interesse, quando o empregador, que é o gerador do risco, também tem a tutela da saúde do trabalhador.

Aí, a gente pode adicionar outros agravantes. Se o médico, por exemplo, é um empregado da empresa, ele é subordinado. E eu estou cansada de ver médico que faz direitinho o seu trabalho e, como eu brinco, emite uma comunicação de acidente de trabalho de manhã e perde o emprego à tarde. Quando [o serviço de saúde] é via contratação de pessoa jurídica, pior ainda. Por que, ao invés de ser um empregador, a empresa passa a ser cliente. E, se o cliente não está satisfeito, muda de contrato.

O segundo problema é que a empresa tem o dever de notificar via carta, por exemplo, quando houver uma doença, um acidente relacionado ao trabalho. Se a empresa cumpre direitinho o seu papel, ela acaba sendo penalizada com o aumento do valor que ela paga ao INSS, com o passar do tempo. Isso não está errado. Se você machuca mais, você deveria pagar mais. É lógica de seguradora. O problema é que, se ela [empresa] se omite e não faz o dever dela, não acontece nada.

E a questão dos exames médicos periódicos obrigatórios? Há muitas críticas de que se criou uma indústria com exames apenas "para inglês ver". Isso deveria ser revisto?

Eu sou uma pessoa que eu tenho uma tendência de olhar o copo meio cheio. Quando nasceram esses exames, eu estou falando lá da época de Getúlio Vargas, não tinha nada. O SUS (Sistema Único de Saúde) só viria a se estruturar 50 anos depois.

Mas qual é a minha grande crítica? Em primeiro lugar, a ausência de possibilidade de escolha desse médico. Você vai fazer seu exame admissional, mandam você ir a um médico que você nunca tinha visto, ele começa a te fazer um monte de perguntas, você não tem garantia nenhuma se o que você está fazendo ali vai comprometer ou não a sua entrada na empresa. É difícil dar certo um exame médico desse.

Essa questão dos exames médicos precisa ser debatida na sociedade de uma maneira honesta, sem os conflitos e interesses econômicos de lado a lado. Tem o lado do trabalhador, tem o lado do empregador, que quer pagar o mínimo possível, e tem o lado da classe médica, que fica carimbando e ganhando trocados com esse negócio. Mas eu acho que isso precisa ser debatido. O grande risco disso são os oportunistas.

O seu receio é, como se diz, "jogar a água da bacia com o bebê fora"? Ou seja, não é porque esses exames estão mal desenhados que eles precisam acabar?

Eu acho que você ilustrou bem: "Gente, a água está suja, não é para jogar a bacia, a água e o bebê juntos". A gente precisava trazer isso para um debate que fosse realmente honesto e qualificado.


 

Fonte: UOL - Carlos Juliano Barros


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