Publicado por Redação em Mercado - 09/02/2022

O mito do trabalho perfeito



Faz parte da natureza humana a incansável busca por relacionamentos ideais. Em se tratando de carreira ou relações românticas, a tendência é sempre a mesma: apego à falível ideia de que há alguém, algo ou uma empresa — seja qual for o objeto de desejo — perfeita. No entanto, perfeição significa “ausência de falhas ou defeitos, em relação a um padrão ideal”, e isso não existe, pois ninguém nem lugar nenhum é infalível. “A perfeição é irreal e inalcançável. O componente das organizações são as pessoas, que trazem em suas bagagens as falhas. Portanto, não haveria a possibilidade de existir uma empresa perfeita”, afirma Adriana Prates, CEO e fundadora da consultoria de recrutamento Dasein Executive Search.

Embora algumas companhias já comecem a expor um pouco mais nas redes sociais suas imperfeições, reconhecendo seus erros, e estimulem que os líderes demonstrem vulnerabilidade, ainda há o discurso estereotipado de que aquele trabalho é o melhor do mundo ou de que aquela empresa é a melhor de todas. Apesar de ser louvável a busca por construir um excelente ambiente de trabalho, disseminar a ilusão de perfeição pode ser altamente prejudicial para as empresas, culminado em funcionários frustrados com a realidade, que muitas vezes pode ser mais dura do que o prometido.

Quem nunca ouviu aquele dito popular que é atribuído ao filósofo chinês Confúcio: “Trabalhe com o que você ama e nunca mais precisará trabalhar na vida”? Impactante e motivador, mas extremamente romantizado. Encontrar seu ikigai (conceito japonês que pode ser traduzido pela frase “o que te faz levantar da cama todos os dias”), ou o famoso propósito, é relevante para a autorrealização; no entanto, por melhores que sejam as condições, trabalho é trabalho. Isso significa que haverá responsabilidades, decepções, chateações, pressão e outros atributos inerentes à vida humana, seja o profissional um trabalhador corporativo ou um empreendedor de seu negócio dos sonhos.

Não há nada de errado em aspirar fazer algo que você ama — todo mundo quer uma carreira que seja gratificante e que pague as contas. “O problema é ter uma visão idealizada do que constitui esse emprego perfeito, pois nenhum trabalho tem desvantagens zero, e não é realista esperar a perfeição de uma função específica, do empregador ou de si mesmo. É um projeto do impossível”, diz Anderson Sant’Anna, professor na FGV-Eaesp e pós-doutor em teoria psicanalítica.

E tem sido nesse sentido que algumas empresas ainda estão se equivocando ao trabalhar o employer branding com muitos filtros e retoques, deixando de lado as fraquezas e oportunidades que também podem ser bastante atrativas para os profissionais que querem ser protagonistas das mudanças. Impulsionadas pelas listas das mais amadas, das melhores e outros rankings, não é raro que companhias percam a mão e vendam realidades fictícias. O segredo é expor a atratividade, potencializando o que há de bom, mas também deixar aparentes as oportunidades de melhoria, convidando os profissionais a evoluir junto com a empresa. Dessa forma, o processo de atração é mais assertivo. “É possível sonhar e realizar lugares incríveis; agora, perfeito nunca será. Almejar ser a empresa mais admirada é demodê. O que se espera hoje é que as pessoas digam que a empresa faz sentido em sua vida. Quando a companhia atinge isso, tem engajamento e resultado. Será vista como um organismo que tem uma reputação orgânica, que não precisa investir em employer branding irreal”, afirma Marcio Fernandes, fundador da Thutor, consultoria especializada em cultura organizacional e gestão estratégica com pessoas e conselheiro independente.

Organismos vivos

“O trabalho não é algo constante. As empresas são organismos vivos. A organização muda, o chefe muda, uma revolução de mercado faz o trabalho em si mudar. Você pode ter o sonho de um trabalho que lhe dê equilíbrio para ajudar a realizar ambições fora dali, mas achar que será sempre perfeito é mito”, diz Gil van Delft, presidente do PageGroup no Brasil, consultoria de recrutamento executivo. Isso significa que, por melhor que uma empresa seja, sempre haverá variáveis controláveis ou incontroláveis que vão fazer com que as percepções oscilem.

Importante lembrar que a transformação não é algo que acontece apenas nas organizações: pessoas também mudam. À medida que evolui e se desenvolve pessoal e profissionalmente, o indivíduo modifica seus anseios — e, em alguns casos, uma empresa que lhe parecia ideal em algum momento pode não ser mais compatível. Em um estudo de 2017, pesquisadores da Universidade Stanford descobriram que o mito do emprego dos sonhos está relacionado à ideia de que os seres humanos têm paixões fixas e que, uma vez que as encontrem e as apliquem ao trabalho, estarão realizados. De acordo com a pesquisa, “incentivar as pessoas a encontrar sua paixão pode levá-las a colocar todos os ovos na mesma cesta, mas depois largá-los quando se tornar difícil transportá-los”. A verdade é que as paixões mudam; e os desejos também.

Por isso, não existe uma única fórmula que vá resolver tudo e que será igual para todo mundo. “Se partimos do princípio da diversidade, não faz sentido propor uma única solução, um modelo de empresa ideal para todos os profissionais”, afirma Felipe Zanola, vice-presidente de operações da Thutor. O executivo utiliza seu próprio exemplo para ilustrar o conceito de que não existe um lugar perfeito, e sim o que se adéqua melhor aos anseios de cada um, dependendo do momento. Quando trabalhava em uma multinacional, tinha um pacote de benefícios recheado e a oportunidade de ascensão internacional, mas não estava completamente realizado. Ali ele se sentia apenas parte de uma grande engrenagem, o que depois de algum tempo deixou de fazer sentido.

Em busca de identificação com o propósito pessoal, fez a transição para uma empresa menor, sem a possibilidade de construir uma carreira multicultural nem a mesma quantidade de benefícios, mas onde sentiu que faria a diferença. “Não dá para dizer que a primeira empresa era ruim, só não tinha a ver comigo. Ela fez a parte dela, entregou o que prometeu naquele caso. Mas descobri lá que o que fazia sentido para mim não era o crescimento acelerado, e sim me sentir útil, agente da mudança”, diz.

Recentemente, o apresentador Tiago Leifert deu um exemplo de como isso acontece na prática ao anunciar, no dia 9 de setembro, pela sua página no Instagram, a saída da Rede Globo após 16 anos de empresa. No post, ele disse: “Faz 20 anos que eu fui para os Estados Unidos estudar com a única missão de um dia trabalhar na Globo. Chegou a hora de declarar vitória e desfrutar de um final muito, mas muito feliz (…) Tomar a decisão de ir embora foi extremamente difícil, mas é o que eu quero neste momento”. Na manhã seguinte à publicação ele assumiu, no programa da Ana Maria Braga, que não estava mais realizado. Para jornalistas e apresentadores, como ele, a Rede Globo é uma das empresas mais almejadas do país; ele mesmo disse que seu único propósito profissional era trabalhar lá. Então, o que mudou? A sociedade, a empresa, ele próprio. Hoje, casado e com uma filha pequena, talvez Tiago queira mais tempo com a família.

Para Felipe, da Thutor, por muito tempo as empresas e a publicidade tentaram padronizar os modelos de felicidade, que agora estão sendo revistos. “Antes, acreditava-se que o símbolo de status profissional era crescer dentro de uma companhia e se tornar líder. Mas as novas gerações estão questionando isso. Não existe mais um único caminho para ser feliz”, diz. “As pessoas estão atrás do que faz sentido para a própria felicidade. E é esse movimento que cada empresa tem que fazer: não se vender como a melhor, mas verificar se o propósito dela faz sentido para aquele profissional que está chegando.”

Armadilha perigosa

Os predicados que fazem as pessoas pensarem no lugar dos sonhos para trabalhar, como o tipo de função, o pacote de benefícios ou o prestígio da empresa, podem ser rapidamente eclipsados por um chefe horrível, uma cultura tóxica ou uma carga de trabalho excessiva. A verdade é que, vistos de fora, os empregos nem sempre têm a mesma aparência de quando o profissional chega lá. Isso pode ou não ser acentuado por uma aptidão da companhia em demonstrar apenas o que tem de bom, ou simplesmente pelo fato de que o trabalho que um colega acha perfeito não funciona para outro, ou pelo menos não funciona no atual momento de vida daquele profissional. Seja qual for a circunstância, quando o alinhamento não acontece, a situação pode ser ruim para ambas as partes.

Se alguém chega à empresa e depara com um dia a dia distante da perfeição que acreditava que encontraria, se frustra e perde engajamento. “Vamos imaginar um profissional que largou um cargo que lhe proporcionava estabilidade e no qual já tinha uma história, para ir para um novo lugar que, por sua vez, lhe gerou frustração. Ele vai sair desse novo emprego que não correspondeu ao que prometia. Ele perdeu estabilidade e tempo, de desenvolvimento e de oportunidade de crescimento”, diz Gil, presidente do PageGroup no Brasil.

Do ponto de vista das empresas, isso gera rotatividade, que acarreta aumento dos custos. “A companhia deixa de construir projetos novos porque gasta com as substituições e perde tempo pensando em processos de melhoria. A empresa fica rodando em círculos”, diz Caroline Cadorin, diretora do Talenses Group, consultoria de recrutamento. “O grande problema hoje é que as empresas se preocupam em blindar a informação em vez de compartilhar e aproveitar as contribuições para melhorar. Dessa forma, mantêm o risco de continuar investindo em profissionais que vão ficar pouco tempo na estrutura porque não se identificaram com a realidade que encontraram”, diz. E a imagem da companhia não fica incólume. “A empresa está exposta em redes sociais como LinkedIn e em plataformas como Glassdoor. Quando a perda de funcionários se torna frequente, a reputação da empresa pode ser derrubada”, diz Gil.

Para os especialistas em recrutamento, profissionais menos experientes ou em início de carreira estão mais suscetíveis a ter uma visão romântica em relação ao trabalho — por isso é preciso especial cuidado com esse público. “Com a conectividade, estamos mais expostos àquilo que todo mundo gosta de compartilhar ou que entendemos que é a verdade sobre o outro”, diz Caroline. “Somos expostos a um mundo maquiado e que nos faz sentir obrigados a ser 100% realizados e completos em todos os aspectos.” Por isso aqueles que estão ingressando no mercado corporativo agora e só conheceram o mundo pelas redes sociais estão mais sujeitos a se enganar. Além dos jovens, pessoas menos curiosas, que investigam pouco a cultura e a realidade das empresas, tendem a sofrer mais com o desapontamento. “Profissionais menos informados correm mais risco de errar, de escolher pela placa bonita na frente da empresa. E os jovens, que talvez não tenham essa habilidade de investigar bem antes de agir”, afirma Gil.

Sem medo de ser vulnerável

Demonstrar as vulnerabilidades e se colocar no mercado como marca empregadora sem filtros pode ser assustador para algumas empresas, mas no mundo atual, que grita por transparência, é uma grande oportunidade. “As lideranças precisam construir ambiências organizacionais para que o indivíduo tenha desejo de criar resultados. Excelência é padrão, é régua já dada, não operamos inovação no padrão. Quem já é perfeito não inova. Sempre há oportunidade de melhorar”, diz o professor Anderson Sant’Anna, da FGV-Eaesp. “Uma empresa que se propõe a oferecer um bom ambiente de trabalho é aquela que cria condições para que os profissionais tenham protagonismo e tragam resultados para si próprios e para a companhia, com a possibilidade de errar”, explica Felipe Zanola, da Thutor.

Além disso, o bom e velho alinhamento cultural é importante para evitar frustrações. Reconhecer já no momento da atração se há identificação entre o candidato e os valores da empresa ajuda a diminuir o turnover de curto prazo. Mas uma ferramenta que vai além e rompe com a proposição do lugar perfeito é mostrar o cenário real da organização: as provocações e os problemas que o profissional vai encontrar ali. “Sempre que abrimos os desafios para as pessoas participarem, os resultados são incríveis. O primeiro passo para quem quer fazer qualquer transformação é viabilizar a participação coletiva”, afirma Marcio, da Thutor. Ele já fez isso quando foi presidente da distribuidora de energia Elektro e alavancou o crescimento dos resultados em 60% mantendo o tamanho do quadro de funcionários, mas iniciando uma cultura de construção colaborativa. “Abrimos os desafios para as pessoas e perguntamos como poderíamos superá-los juntos. Sendo envolvidas, elas se engajam e buscam formas de dar conta. Os profissionais se acomodam ou vão embora porque discordam do caminho”, diz.

Em um processo seletivo em que o líder abre suas vulnerabilidades, demonstra que não tem resposta para tudo e convida o novo profissional a resolver junto, a questão deixa de ser só dele e passa a ser um problema dos dois. “Mostra-se, então, confiança e que a construção será conjunta. Isso gera muito engajamento porque o profissional reconhece que não será apenas um executor, mas pensará a estratégia. Além disso, se sente necessário. Caso contrário, se a organização e o gestor não falham, por que precisarão dele?”, diz o professor Anderson Sant’Anna. E a transparência sobre os pontos a melhorar traz uma grande vantagem: atrai para a companhia pessoas que realmente se identificam com o que a empresa é de verdade — e que estão prontas para ajudá-la a superar seus desafios sem idealizações.



Fonte: Você RH


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